terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Minha versão de dentro do acidente do ônibus que deixou sete vítimas; três em estado grave



Quase três horas da madrugada. Tudo em silêncio e na mais perfeita calmaria e paz. Dormia um sono profundo. Profundo não, porque quem é que pode dormir bem numa poltrona que é desconfortável como as que são de um ônibus, ainda mais de que é convencional?

DE REPENTE: o impacto e o barulho da batida do ônibus no caminhão de boi... estilhaços de vidro voando no meu rosto (isso, porque estava sentado na poltrona 35, do meio para o final do ônibus)... uma gritaria e muito choro, misturados com vozes de crianças, jovens, adultos e idosos... e ainda por cima, a luz do ônibus que permaneceu apagada por eternos segundos: meu Deus o que está acontecendo?

Gritos de “para motorista, para o ônibus!” e de “quebra a janela gente!” e de “me ajuda eu quero sair daqui!”, junto com “gente, parece que tem gente morta aqui na frente”, meu Deus, o que será tudo isso afinal?

Quando a luz do ônibus finalmente é acessa; quando o ônibus finalmente para; continuo sem entender o que houve... porque todos estão de pé? Que confusão é esta?
E o ônibus, para ajudar, veio lotado. Das 45 (acho que é isso) vagas, 44 estavam sendo usados, por crianças, jovens, adultos e idosos.

O que não entendo meu Deus do céu é porque a galera do inicio do ônibus ao invés de descer pela porta da frente, estão todos vindo para o meio, na minha direção: o que houve com a porta? Será que o estilhaço foi da porta e não das janelas?

Um grupo de homens estão tentando abrir as janelas de emergência, e eu aqui, paralisado, sentido uma mistura de terror e pânico, com uma sensação de confusão e desorientação... mas também, como poderia ser diferente, se estava dormindo e sou acordado da pior maneira possível?

Gritos de uma mulher pedindo, melhor dizendo: pedindo não, implorando que “pelo amor de Deus me ajudem! Ai que dor! Socorro!” me deixam mais ainda em estado de profundo choque.

Finalmente a janela de emergência é aberta... todos querem descer de uma vez, mas não é possível, por causa dos bancos que atrapalham  descer. Pedidos de mães desesperadas, para que tirem suas crianças. No meio de tudo isso, alguém diz “pera ai gente, que o ônibus parou e não tem mais nada que ameace a gente” ao que outro retruca “precisamos sair logo, porque o ônibus não está com o pisca alerta ligado, vai que um caminhão ou carro vem e bate atrás do ônibus?”, foi o suficiente para começar a correria e gritaria de novo para descer.

Quanto a mim, fiquei tão em choque, que demorei para sair. E quando saí do ônibus, foi porque o que estava na minha frente era mais desesperador do que meu próprio choque: pessoas presas com uma lasca de madeira enorme do caminhão, nas pernas, gritando desesperadas e gemendo de dor.

Tentar ajudar a socorrer as vitimas? Mesmo se tivesse como, isso estava naquele momento de estado de choque, para além dos meus limites: tenho vergonha, mas não pude nem tentar ajudar do lado de dentro as vitimas. Alias: essa cena foi até mais forte do que minha própria paralisação e estupor, fazendo com que, conseguisse enfim, me mexer e sair do ônibus.

Lá fora, todos tentando entender o que aconteceu. Todos em estado de choque. A diferença entre um e outro é que enquanto uns ficavam paralisados em choque (eu), outros usavam esse choque, essa adrenalina para agir.

E agir como? Tentando tirar a lasca pesada e grande de madeira cravada na frente do ônibus e nas pernas das pessoas.
Foi ai que chegaram as primeiras das três viaturas de polícia, e duas ou três ambulâncias, mas, que, nada ainda do corpo de bombeiros.

Muita luz, muita sirene, muito corre corre: o desespero ainda não acabou. Tem gente presa nas ferragens.

E para aumentar ainda mais a tensão e subir o nível de estresse, um bate-boca: de um lado (a maioria) não querendo esperar o corpo de bombeiros chegar, propunham agir o mais rápido possível; do outro, alguém diz para a turma que é preciso esperar justamente o corpo de bombeiros, pois eles são os técnicos responsáveis e mais capacitados para retirarem a lasca enorme de madeira, chegando ao ponto de argumentar, que se alguém mexesse e desse algo errado, seria responsabilizado pelo erro, ao que alguém já no seu limite responde com a ideia de ninguém mexer, mas se alguém por isso morrer, tal pessoa que levantou o argumento anterior, para que ninguém mexesse, seria responsabilizado.

E eu, lá, parado, flutuando no meu estupor e no meu estado de choque, pensando como seria mil vezes mais terrível, se tivesse como meus dois filhos (um de 4 anos, e outro, de 10 anos), quando alguém no meio dos passageiros me reconheceu: um rapaz que trabalha na Promotoria de Mucurici-ES, aonde, por causa do meu trabalho no CREAS, que só trabalha com direitos violados e por isso, diretamente com promotor e juiz, me reconheceu e começou a falar alto “gente, ele é psicólogo, ele pode ajudar”.

Pera ai: como assim eu sou psicólogo e posso ajudar? Eu é que quero saber quem é que vai me ajudar e me socorrer desse estado de choque... imagina então eu nesse momento conseguir ajudar alguém.

Mas quando estava terminando de pensar esse pensamento, alguém chega pra mim e pergunta se sou mesmo psicólogo. Minha vontade era de negar, de cavar um buraco na terra e me esconder, mas naquele momento, começou a agir em mim, outras forças, que não apenas a paralisia, eram: o dever, a consciência e a ética de ajudar, minimamente é verdade, mas que nem por isso deixaria de ser algum tipo de ajuda, de algo pequeno para aquele momento, que eu poderia ofertar a quem estava, assim como eu, muito angustiado e meio atônito.

Só ai e que comecei a usar a adrenalina que tinha se espelhado no meu corpo, por causa do choque emocional do acidente, para ir até as pessoas que queriam e sentiam necessidade de um atendimento emergencial psicológico.

E que bom foi para algumas pessoas e para mim: ao ajudar elas, estava, sem ainda, naquele momento, me dar conta, de que estava me ajudando a sair um pouco de mim mesmo, dos meus sentimentos, sensações e pensamentos, para ajudar quem precisava muito de mim.

Depois de umas duas horas, tudo estava resolvido (a ambulância levou os mais gravemente feridos a um hospital perto do acidente; a polícia prendeu em fragrante o motorista completamente alcoolizado que deixou o caminhão de carregar boi, entre o encostamento e a pista, parado; e nós embarcávamos em outro ônibus (executivo) disponibilizado pela Águia Branca)... quer dizer: nem tudo, já que as marcas do acidente, se em algumas foram mais graves fisicamente, em outras (como eu) ficaram como profundas marcas psicológicas.

Marcio Alves

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Eu e o acidente de ônibus: livramento de Deus?

*Foto do ônibus não é ilustrativa: é real. Foi o acidente que eu escapei.

Acabei de escapar ileso de um acidente: estava dentro do ônibus da viação Águia Branca, que voltava as 23h30, de Vitória à Ponto Belo, Espírito Santo, que bateu em um caminhão de boi, ferindo sete pessoas, três em estado grave, entre Colatina e São Domingos, por volta das três horas da madrugada de hoje.

A frase mais ouvida por mim foi a de que “Deus me livrou”. Mas hipótese que já descartei, com o seguinte (corajoso) questionamento: o que tinha em mim de diferente dessas sete vitimas, que fez Deus me livrar e a elas não?

Minha solidariedade e humanidade me faz posicionar ao lado das vitimas: não consigo conceber um Deus justo e bom, que em um mesmo acidente, livra alguns (eu) para deixar outros (sete) a mercê de seu próprio destino, ou, (o que é terrivelmente pior): determina quais se salvarão e quais se acidentarão.  

Sou muito humano para aceitar tal ideia (popular) de Deus (que faz distinção para livrar) e um pouco inteligente para aceitar tal explicação “milagrosa” do meu livramento. 

Prefiro tatear explicações mais, digamos, humanas e corajosas: por causa de alguns fatores controláveis e planejáveis, e outros, por mera “sorte”, escapei ileso.

Primeiro: toda vez que viajo, sempre prefiro poltronas que ficam do meio para o fim do ônibus: sempre me ocorreu a possibilidade de um acidente onde os primeiros da frente serão (obviamente) os primeiros atingidos, caso o ônibus bata de “frente”; e, sentar antes do final, para se caso baterem na traseira do ônibus, não ser o primeiro dos últimos a ser atingido.

Segundo: sempre uso cinto de segurança, pois isso se não ajudar na hora de um acidente mais grave, mal não vai fazer, além de muitas estatísticas mostrarem que o cinto pode literalmente salvar uma vida em acidentes.

Terceiro: contar com a sorte mesmo. Eu não escrevi errado. Escrevi sorte, porque quero dizer sorte mesmo. Se existe acidente para o mal, no caso do azar, do famoso estar na hora e lugar errado, existe também, o acidente para o bem: de não estar na hora e lugar errado.

O que quero dizer é que graças a fatores controláveis, como os que citei, e os que não estão em nosso controle (você estar dentro de um avião, por exemplo, que cai e mata todo mundo), é que podemos falar sempre em probabilidades e possibilidades, mas nunca de certezas.

O que significa dizer que o que aprendi é o que já sei, mas que foi reforçado: tome todos os cuidados necessários que estejam em seu alcance, mas saiba que a vida é como uma roleta russa: a qualquer momento podemos não escapar de um acidente.

Mas enquanto isso não chega, sou grato a Deus só pelo fato dEle não intervir nos acidentes, seja para bem, seja para o mal, porque afinal, um Deus universal, que não livra, mas que também não "permite" (leia-se "provoca") acidentes, é muito mais humano e justo, do que um Deus que livra "pela metade" (incompetência?) ou em "partes" (o famoso Deus me livrou de morrer, mas não me livrou de sofrer um acidente grave e parar num hospital).

Marcio Alves