Quase três horas da madrugada. Tudo em silêncio e na mais
perfeita calmaria e paz. Dormia um sono profundo. Profundo não, porque quem é
que pode dormir bem numa poltrona que é desconfortável como as que são de um ônibus,
ainda mais de que é convencional?
DE REPENTE: o impacto e o barulho da batida do ônibus no
caminhão de boi... estilhaços de vidro voando no meu rosto (isso, porque estava
sentado na poltrona 35, do meio para o final do ônibus)... uma gritaria e muito
choro, misturados com vozes de crianças, jovens, adultos e idosos... e ainda
por cima, a luz do ônibus que permaneceu apagada por eternos segundos: meu Deus
o que está acontecendo?
Gritos de “para motorista, para o ônibus!” e de “quebra a
janela gente!” e de “me ajuda eu quero sair daqui!”, junto com “gente, parece
que tem gente morta aqui na frente”, meu Deus, o que será tudo isso afinal?
Quando a luz do ônibus finalmente é acessa; quando o ônibus
finalmente para; continuo sem entender o que houve... porque todos estão de pé?
Que confusão é esta?
E o ônibus, para ajudar, veio lotado. Das 45 (acho que é
isso) vagas, 44 estavam sendo usados, por crianças, jovens, adultos e idosos.
O que não entendo meu Deus do céu é porque a galera do inicio
do ônibus ao invés de descer pela porta da frente, estão todos vindo para o
meio, na minha direção: o que houve com a porta? Será que o estilhaço foi da
porta e não das janelas?
Um grupo de homens estão tentando abrir as janelas de
emergência, e eu aqui, paralisado, sentido uma mistura de terror e pânico, com
uma sensação de confusão e desorientação... mas também, como poderia ser
diferente, se estava dormindo e sou acordado da pior maneira possível?
Gritos de uma mulher pedindo, melhor dizendo: pedindo não,
implorando que “pelo amor de Deus me ajudem! Ai que dor! Socorro!” me deixam
mais ainda em estado de profundo choque.
Finalmente a janela de emergência é aberta... todos querem
descer de uma vez, mas não é possível, por causa dos bancos que atrapalham descer. Pedidos de mães desesperadas, para
que tirem suas crianças. No meio de tudo isso, alguém diz “pera ai gente, que o
ônibus parou e não tem mais nada que ameace a gente” ao que outro retruca
“precisamos sair logo, porque o ônibus não está com o pisca alerta ligado, vai
que um caminhão ou carro vem e bate atrás do ônibus?”, foi o suficiente para
começar a correria e gritaria de novo para descer.
Quanto a mim, fiquei tão em choque, que demorei para sair. E
quando saí do ônibus, foi porque o que estava na minha frente era mais
desesperador do que meu próprio choque: pessoas presas com uma lasca de madeira
enorme do caminhão, nas pernas, gritando desesperadas e gemendo de dor.
Tentar ajudar a socorrer as vitimas? Mesmo se tivesse como,
isso estava naquele momento de estado de choque, para além dos meus limites:
tenho vergonha, mas não pude nem tentar ajudar do lado de dentro as vitimas.
Alias: essa cena foi até mais forte do que minha própria paralisação e estupor,
fazendo com que, conseguisse enfim, me mexer e sair do ônibus.
Lá fora, todos tentando entender o que aconteceu. Todos em
estado de choque. A diferença entre um e outro é que enquanto uns ficavam
paralisados em choque (eu), outros usavam esse choque, essa adrenalina para
agir.
E agir como? Tentando tirar a lasca pesada e grande de
madeira cravada na frente do ônibus e nas pernas das pessoas.
Foi ai que chegaram as primeiras das três viaturas de polícia,
e duas ou três ambulâncias, mas, que, nada ainda do corpo de bombeiros.
Muita luz, muita sirene, muito corre corre: o desespero ainda
não acabou. Tem gente presa nas ferragens.
E para aumentar ainda mais a tensão e subir o nível de
estresse, um bate-boca: de um lado (a maioria) não querendo esperar o corpo de
bombeiros chegar, propunham agir o mais rápido possível; do outro, alguém diz
para a turma que é preciso esperar justamente o corpo de bombeiros, pois eles
são os técnicos responsáveis e mais capacitados para retirarem a lasca enorme
de madeira, chegando ao ponto de argumentar, que se alguém mexesse e desse algo
errado, seria responsabilizado pelo erro, ao que alguém já no seu limite
responde com a ideia de ninguém mexer, mas se alguém por isso morrer, tal
pessoa que levantou o argumento anterior, para que ninguém mexesse, seria
responsabilizado.
E eu, lá, parado, flutuando no meu estupor e no meu estado de
choque, pensando como seria mil vezes mais terrível, se tivesse como meus dois
filhos (um de 4 anos, e outro, de 10 anos), quando alguém no meio dos
passageiros me reconheceu: um rapaz que trabalha na Promotoria de Mucurici-ES,
aonde, por causa do meu trabalho no CREAS, que só trabalha com direitos
violados e por isso, diretamente com promotor e juiz, me reconheceu e começou a
falar alto “gente, ele é psicólogo, ele pode ajudar”.
Pera ai: como assim eu sou psicólogo e posso ajudar? Eu é que
quero saber quem é que vai me ajudar e me socorrer desse estado de choque...
imagina então eu nesse momento conseguir ajudar alguém.
Mas quando estava terminando de pensar esse pensamento,
alguém chega pra mim e pergunta se sou mesmo psicólogo. Minha vontade era de
negar, de cavar um buraco na terra e me esconder, mas naquele momento, começou
a agir em mim, outras forças, que não apenas a paralisia, eram: o dever, a
consciência e a ética de ajudar, minimamente é verdade, mas que nem por isso deixaria
de ser algum tipo de ajuda, de algo pequeno para aquele momento, que eu poderia
ofertar a quem estava, assim como eu, muito angustiado e meio atônito.
Só ai e que comecei a usar a adrenalina que tinha se
espelhado no meu corpo, por causa do choque emocional do acidente, para ir até
as pessoas que queriam e sentiam necessidade de um atendimento emergencial
psicológico.
E que bom foi para algumas pessoas e para mim: ao ajudar
elas, estava, sem ainda, naquele momento, me dar conta, de que estava me
ajudando a sair um pouco de mim mesmo, dos meus sentimentos, sensações e
pensamentos, para ajudar quem precisava muito de mim.
Depois de umas duas horas, tudo estava resolvido (a
ambulância levou os mais gravemente feridos a um hospital perto do acidente; a polícia
prendeu em fragrante o motorista completamente alcoolizado que deixou o
caminhão de carregar boi, entre o encostamento e a pista, parado; e nós embarcávamos
em outro ônibus (executivo) disponibilizado pela Águia Branca)... quer dizer:
nem tudo, já que as marcas do acidente, se em algumas foram mais graves
fisicamente, em outras (como eu) ficaram como profundas marcas psicológicas.
Marcio Alves