domingo, 6 de novembro de 2011

A cibernética lacaniana

Por Edson Moura
Existe um texto de Lacan com o nome de “Psicanálise e Cibernética”, ou “Acerca da Origem das Linguagens”, com data de Junho de 1955, que ainda é pouco estudado pelos historiadores de Psicanálise. Nele Lacan propõe uma interessante aproximação entre a sua teoria do Inconsciente e a Cibernética, uma disciplina então nascente e que décadas mais tarde iria se tornar a nossa já conhecida “Inteligência Artificial”. Curiosamente, nem mesmo os mais competentes biógrafos de Lacan, como, por exemplo, Elizabeth Roudinesco, sequer mencionam essa conferência.

Por qual motivo omitiram esse pensamento lacaniano acerca da Cibernética? Talvez essa seja uma atitude intencional de alguns psicanalistas que vêem na Inteligência Artificial e na Ciência Cognitiva algo necessariamente oposto à Psicanálise. A ciência Cognitiva é demonizada, de forma caricatural, como uma espécie de teoria diabólica que visa, em última análise, transformar os seres humanos em máquinas. Essa tendência aparece na obra de Roudinesco, especialmente no livro “Por que a Psicanálise?”, que tem passagens ácidas no que se refere à Ciência Cognitiva.

Mas outra hipótese que o texto dessa conferência revela-se extremamente complexo para aqueles que não têm formação em Ciência da Computação. Nele, por exemplo, aparecem desenhos em tabelas que parecem, à primeira vista, estranhos. Eles são, na verdade representações de portas lógicas de um computador.

As portas lógicas são uma espécie de representação elétrica do pensamento humano. Se assumimos que quase todo pensamento é constituído de proposições e que elas são, invariavelmente, ou verdadeiras ou falsas, podemos construir um circuito elétrico que as represente. A idéia é que “verdadeiro” ou “falso” podem corresponder, reciprocamente, a 0 e 1, e estes, por sua vez, a um circuito fechado (no qual passa corrente) ou um circuito aberto (no qual não passa corrente). É da idéia cotidiana de que nosso raciocínio são proposições verdadeiras ou falsas que são constantemente combinadas na forma de um cálculo que surge a semelhança entre circuitos elétricos e mentes ou, em última análise, entre mentes e computadores.

Mas por que Lacan estaria preocupado com isso? A Razão parece estar no fato de que há outro conceito fundamental que norteia a Ciência da Computação e a programação de computadores: a “recursão”.

A recursão é um tipo de processo no qual um de seus passos envolve sua repetição completa. Uma forma humorística de definir a recursão é dizer que “as bolachas vendem mais porque são fresquinhas e são fresquinhas porque vendem mais”. O que se percebe nesta frase é um procedimento de repetição, no qual, se não houver uma instrução especifica para parar, continuará assim por um tempo indeterminado. Ou seja, a recursão é o procedimento em círculo, sem que se coloque um fim para ele.

Procedimentos recursivos são a base da construção de algoritmos (programas). Mas isso ocorre não somente com as linguagens artificiais utilizadas pelos computadores. Nossa linguagem natural também é recursiva. Na década de 1950, Noam Chomsky propôs essa hipótese. Quando escrevemos uma sentença, podemos sempre acrescentar uma outra a ela, e assim por diante, num processo infinito. “Há um garoto sentado na ponte” pode se transformar em “Há um garoto que matou seus pais sentado na ponte” e “Há um garoto que matou seus pais sentado na ponte criando coragem para pular” e assim por diante. A linguagem remete à própria linguagem e este é um procedimento circular repetitivo.

Ora, Lacan acompanhava os progressos da Cibernética nos anos 50 e, possivelmente, conhecia os trabalhos de seus pioneiros, entre eles o de Norbert Wiener, que estava profundamente envolvido com a programação de computadores. Da mesma maneira, os trabalhos de Chomsky acerca da recursão em linguagens naturais também deviam ser conhecidos por Lacan.

Se a linguagem é recursiva, nos diz Lacan, o inconsciente também o será, já que está estruturado na forma de uma linguagem. É daí que vem o caráter repetitivo do inconsciente, o fenômeno da repetição inexorável, identificado por Freud na sua obra de maturidade. A repetição em um processo neurótico é praticamente interminável, a não ser que em algum momento haja uma instrução para interrompê-lo, como pode ocorrer na psicoterapia. A neurose é um procedimento recursivo e, para explicar sua natureza, teríamos de buscar um modelo cibernético para ela. O neurótico é uma máquina “em looping” e é isso que o aproxima da pulsão da morte. Essa é, em síntese, a mensagem da conferência de Lacan transcrita no seminário II.

Talvez devamos, então, reconsiderar a posição da Psicanálise diante da Inteligência Artificial e da Ciência Cognitiva. Talvez Roudinesco esteja excessivamente à margem esquerda do rio Sena para poder vislumbrar o interesse de Lacan por essas disciplinas, que na década de 1950 , já eram pesquisas científica de ponta. Mas para reconhecer isso será preciso abandonar preconceitos que permeiam a historiografia da Psicanálise. Provavelmente são eles que não permitem que os historiadores da Psicanálise consigam vislumbrar a verdadeira dimensão dessa conferência de Lacan e prefiram não mencioná-la.


Fonte: Revista Filosofia edição 64 pág 37 (João de Fernandes Teixeira, Ph.D pela University of Essex Inglaterra/Professor titular na Universidade Federal de São Carlos site www.filosofiadamente.org)

8 comentários:

  1. Noreda


    Muito interessante essa aproximação da cibernética com o que se passa na psique humana.

    Vou conferir esse trabalho cuja fonte você revelou no final de sua postagem.

    De longe eu já vinha imaginando: a cibernética funciona a maneira de um cérebro. Não é a toa que expressões como “Arquivo”, “Memória”, Rede, Emergência do aparato virtual tem definições muito parecidas com o sistema neuro-psíquico teorizado por Freud. (rsrs)

    Vou passar um link para você visitar, que tem tudo a ver com esse tema por demais empolgante:

    http://redalyc.uaemex.mx/pdf/307/30701912.pdf

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  2. Mestre Levi, pra mi foi u,a surpresa também encontar este artigo numa revista de Filosofia. Tinha certeza de que você seria o primeiro, senão o único a comentar este texto. rsss

    Abraços!

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  3. Pela psicanálise, o que ocorreu nos primeiros anos de vida é fundamental, pois vai influenciar o indivíduo na maturidade a ser o que é.

    Se a neurociência um dia conseguir fazer o “destravamento” dos arquivos que ficaram ocultos à consciência, isto é, que possamos nos lembrar de tudo que se passou em nossa tenra infância desde o nascimento até os 3 ou 4 anos de idade, o “inconsciente” de Freud, pode ir por água abaixo (rsrs)

    Por falar nisso, o Paraibano Ariano Suassuna, em uma entrevista pela TV, disse que se lembra de fatos ocorridos quando ainda amamentava, no sexto mês de vida. Pode ser tudo seja elucubração do autor do Auto da Compadecida (rsrs)

    Fernando Pessoa, já dizia que, O poeta é um fingidor.
    Finge tão completamente
    Que chega a fingir que é dor
    A dor que deveras sente.
    (rsrs)

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  4. Em tempo:

    Ao invés de "o que ocorreu nos primeiros anos de vida", LEIA-SE:

    "o que ocorre nos primeiros anos de vida"

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  5. Mestre Levi, adoraria ver a teoria Freudiana cair por terra, mas ela está tão bem "embalsamada" pelo esquecimento, digamos natuarl, que acho que teremos que esperar mais alguns anos por novas revelações acerca do tema.

    Acredito que seja possível, num futuro não mauito distante, que nossos cientistas possam desenvolver alguma susbstância que os permita acessar, não o inconsciente, mas o sub-consciente, de forma mais rápida e sem muito esforço. Talvez assim, possamos não só nos lembrar instantaneamente daquilo que vimos há dez ou vinte anos, mas poderíamos até retro ceder até a infância mais remota.

    Quanto ao Suassuna, já lí algo sobre memória projetada ou algo assim. Diz-se daquela memória que nossos pais, por tantas vezes falarem, acaba tornando-se uma memória "verdadeira", ou seja, pode até não ter acontecido mesmo, mas a iamgem está armazenada de verdade em nossa memória, interessante não?

    Ou...talvez o poeta seja um enganador mesmo"rsss

    Abraços mestre"

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  6. Caramba! escrever no celular é mais difícil que refutar a teoria da criaçãp!

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  7. "Taí, finalmente um texto que me deixou interessado de verdade neste Site, para provar meu interesse, vou deixar aqui, algo que pesquisei na Net e que pode ajudar e muito os seus leitores marcio.

    HISTÓRIA DA CIBERNÉTICA

    De uma maneira geral reconhece-se que o aparecimento científico data de 1948, quando o matemático americano Norbert Wiener publicou o seu trabalho "Cibernética ou regulação e Comunicação no animal e na máquina".

    A palavra "cibernética" não era um neologismo de Wiener. Este termo foi empregado cerca de oitenta anos antes pelo físico Inglês Maxwell para determinar os estudos dos mecanismos de repetição. No entanto, não é a Maxwell que se deve a criação da palavra "cibernética". O célebre físico Francês Ampére já a utilizara muitas dezenas de anos antes de Maxwell. A verdade é que Ampére considerava como tal, não a automação, mas a ciência dos meios de governo assegurando aos cidadãos a possibilidade de usufruir plenamente as benesses deste mundo.

    Enfim, muitos séculos antes de Ampére, o filósofo grego Platão servia-se da palavra "cibernética", em grego kubernêtes que significa piloto, para designar a arte de pilotagem, bem como, num sentido figurado, a arte de dirigir os homens.

    Ora, a ciência tanto quanto ciência na concepção moderna definida por Norbert Wiener, é a teoria da regulação e da comunicação, quer na máquina quer no animal.

    O mérito deste matemático consiste em ter sido ele o primeiro a compreender que, graças aos progressos de um grande número de disciplinas científicas (a fisiologia, que desenvolveu principalmente sob o impulso dos trabalhos de L. Pavlov; a teoria da informação criada pelo matemático soviético A Kolmogorov sobre a teoria das probabilidades; a teoria dos autómatos desenvolvida um dos maiores físicos do nosso século, John Von Neumann.

    O Provocador

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  8. edson,

    não me considero apto para me aprofundar em cibernética pois minhas leituras sobre o tema são poucas assim como, em psicanálise.

    mas sei que as teorias de fraud foram muito contestadas anos atrás mas atualmente, eles voltaram a ser aceitas com algumas modificações propostas aqui e ali.

    mas para mim, o grande drama não é o inconsciente e sim, a consciência humana. comparar o cérebro humano com inteligência artificial ou como se fosse um computador, é por demais simplista.

    não há nada que um máquina "pensante" de última geração possa fazer que se assemelhe minimante à consciência humana. e se não sabemos bem o que é e de onde vem a consciência, imagine só ponderar sobre o inconsciente?

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