“Não estava lá, mas
posso imaginar”
A imagem de crianças com suas
canecas de ferro fundido nas mãos, implorando por um pouco de leite, ou
migalhas de pão, não me saem da cabeça. São imagens forjadas por minha mente,
eu sei, pois eu nunca presenciei tais fatos. Auschwitz-Birkenau, este é seu nome, e se, mesmo sem conhecê-la, consigo
sentir o terror invadir-me ao simples som de seu nome, posso imaginar o terror
que habitava os homens e mulheres que para lá foram levados.
Crianças que num dia brincavam com seus animais de estimação, faziam suas
refeições, aconchegavam-se no colo de suas mães e lambiam o bigodinho deixado
pelo leite morno que tomavam, no outro se viam desamparadas, famintas,
carentes, absolutamente sós num lugar onde o único conforto imaginável seria a
esperança de um dia adentrarem os portões do céu e descansarem nos braços de
seu Deus.
Quem afagaria seus cabelos quando tivessem um pesadelo noturno? Quem
daria aquele beijinho quando caíssem e de leve, esfolassem os joelhos? Quem os
protegeria dos monstros que existem debaixo de suas camas? Quanta dor foi causada a essas crianças. É
nessa hora que eu me desespero com o ser humano. É nessa hora que não consigo
conter a taquicardia e as lágrimas que brotam de meus olhos. Homens animais que
tratam suas crianças como lixo, como descartáveis, não se dão conta de que uma
espécie que não pode proteger seus filhotes, que não sente a extrema
necessidade de dar carinho a eles, não merecem permanecer vivos.
O que dizer das mães, que pela força foram arrancadas de suas crias,
vendo-os serem carregados para longe do lar, para a morte certa? Quem pode
sentir uma fração da dor de um pai que ao observar a partida de seu filho, para
sei lá onde, sente-se o mais inútil dos seres. Sem forças para lutar o que pode
fazer é apenas chorar. Não estive lá, mas posso imaginar. A estupidez de um
austríaco mostrou o quão insano pode ser o homem.
As mulheres chegavam aflitas dos
comboios de trens para Auschwitz, Sobibór, Treblinka, Majdanec, Belzec,
desesperadas por um pedaço de pão para seus filhos famintos. Imagine viajar por
dois dias, 170 pessoas espremidas em um único vagão. E quando chegavam eram
rapidamente selecionadas pelos médicos da SS. Entre as da esquerda ficavam as
que serviriam no regime de escravidão nos campos de concentração; as da
direita, juntamente com crianças, idosos
e deficientes, iam para as câmaras de gás. Carregando suas malinhas, muitas
vezes após mais de um dia sem comer, sedentas e com frio, as crianças
perguntavam: “mamãe, estou com fome, onde vamos?”. Provavelmente as mães não
sabiam o que responder. Algumas, creio eu, num esforço descomunal para
consolá-las, diziam: “Vamos tomar banho e depois jantar.” Quem conhece a
história sabe que este banho seria o seu último, e refeições certamente não
precisariam mais, pois os chuveiros eram adaptados para sair, não água, mas sim
um gás letal.
Eles não gritavam, nem choravam,
pais e filhos judeus, ciganos, negros, ou doentes mentais, tiravam as roupas,
reuniam- se em circos familiares, beijavam- se e despediam-se uns dos outros,
esperando por um sinal dos homens maus
da SS que ficavam perto da vala com
chicotes nas mãos. Quantas vezes me imaginei naquele cenário? Pensando e
repensando qual seriai a minha reação? Será que eu imploraria por clemência?
Será que me agigantaria diante dos soldados e morreria lutando por minha
família? Talvez sim. Ou talvez eu permanecesse parado, como um covarde,
contemplando a máquina de matar de Hitler em pleno funcionamento. Não ouviriam
de mim nenhum pedido de clemência diante do pelotão de fuzilamento... talvez.
Numa dessas divagações, uma cena
se materializou em minha cabeça: “Auschwitz
II estava silenciosa. Podia sentir o frio cortante bater em meu rosto e os
pelos de meu corpo se arrepiarem. Uma fila se estendia pelo campo, era chegada
a hora, mais alguns receberam a permissão para partir. Presenciei uma
família de seis pessoas, um homem e uma mulher de aproximadamente 40 anos, com
duas filhas de 15 e 14 anos, dois meninos, um de 7 e outro de 5 anos apenas... a
mãe abraçava o mais novo. O homem olhava sua esposa com lágrimas nos olhos.
Depois o pai segurou a mão do menino de 7 anos e falou com ele ternamente, não
pude ouvir, mas vi uma lágrima rolar no rosto da criança e logo depois ser
contida pelo dedo polegar do pai. O menino lutava para contê-las.
Uma série de tiros então rompeu o
silêncio. De onde estava não conseguia ter uma visão clara, então dei dois
passos à frente e olhei por sobre o ombro de um soldado da SS. A cena me
aterrorizou. Vi os corpos das crianças se contorcendo, e os de seus pais,
imóvel. Corações que até um instante pulsavam, crianças que outrora sorriam e
brincavam, agora jaziam em cima de uma pilha de outros corpos que morreram antes
deles.
Sempre fico abalado com esses
pensamentos. Chego à triste conclusão de que não houve geração que não
produzisse insanidades, não houve povo que não formasse mentes estúpidas, mas
nos dias de Adolf Hitler nossa espécie foi às raias da loucura. Crianças e adultos
tirados de seus lares, vidas interrompidas pelo desejo megalomaníaco de um só
homem, que com extrema inteligência manipulou as mentes de uma sociedade tida
como a mais culta de todas.
Onde estavam os grandes
filósofos, que não ouviram os gemidos inexprimíveis de crianças e adultos, de
negros e judeus, ciganos e poloneses? Eles também se calaram! Alguns até
aderiram ao pensamento de Hitler e colaboraram com a tentativa de “limpeza
étnica”. Outros comentavam com orgulho que os campos de concentração era uma
industria de massacre sem falhas. Desde a seleção dos que chegavam, à
eliminação dos cadáveres até ao aproveitamento de seus pertences e restos
mortais.
Alguns vêm esses relatos apenas
como estatísticas, outros dizem nunca ter acontecido. São os filhos do
cartesianismo, onde nada escapa da frieza dos números, de dados estatísticos.
Notícias de terremotos que matam milhares e deixa milhões sem lar, chacinas,
Tsunamis, tudo não passa de números para alguns. Para outros (poucos eu sei),
notícias assim chocam, comovem e os fazem repensar seus conceitos. Trazendo uma
verdade implícita em seus sentimentos: “Quando uma sociedade não conhece a
fundo sua história, corre o risco de cometer os mesmos erros, talvez até
maiores”.
Não estivemos lá, mas podemos
imaginar.
Edson Moura
BRAVO, Grande Noreda!!!
ResponderExcluirA sua narrativa verídica-imaginária me fez viajar aos campos de concentrações.
Eu não estava lá, mas seu texto sensibilizou-me,a ponto de entristecer-me profundamente com o ser humano, neste dia triste de inverno que se inicia aqui em meu torrão.
Abraços
Oi Noreda
ResponderExcluirCaramba parecia que estávamos todos lá! O seu artigo colocou todas as pessoas diante daquele desastre da humanidade. Quanta estupidez! Até quando?
abç
Bela narrativa "bração" (EDSON), mas que pena mesmo que para o ser humano sentir um minimo de "dó" do outro, ele precise imaginar vivendo na situação do outro...detalhe: quando o ser humano imagina vivendo na situação do outro, quem esta "lá" não é outro, mas ele, ou seja, não existe "outro", o que existe é apenas "nós".
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