Cada livro refere-se a vários aspectos de uma época específica. Concentramo-nos acerca do debate sobre a nudez, em seus aspectos de privacidade, intimidade e sociabilidade. Durante a história houve distintas maneiras de tratar essa questão. Tentamos, assim, fundir a argumentação sob este motivo de maneira simples e didática.
Da Europa Feudal à Renascença
As narrativas feudais debatem amplamente sobre a exposição do corpo nu, ao olhar de si, de sua captura pelo olhar do outro, da função ambígua do vestuário (como proteção, pudor ou adorno), da percepção e do uso da nudez nas práticas sociais das comunidades fictícias literárias. O recurso ao traje aparece nas narrativas feudais como revelador de desejos exibicionistas e de um sentimento contraditório de vergonha.
Através dessa obsessão, "estar nu ou mal vestido", a literatura põe em cena o sentimento de incômodo experimentado pelo sujeito posto nu, a reprovação implícita por outros, que poderia no mesmo instante, encobrir uma forma jubilosa, ao menos nos caso dos nus masculinos, da representação do Eu. Pelo desnudamento e pela evocação da vergonha individual, do olhar de outrem e da relação com o grupo, as representações do corpo nu revestiram-se com insistência da noção de um exílio e de uma rejeição temidos. Pela relação íntima com o corpo e, paralelamente, pela relação com o mundo ordenado segundo leis, os nus - sempre banhados de vergonha - levam o selo de proibições e de tabus que atuam segundo uma distinção sexual.
Contudo, de início, o nu feminino, assim como o masculino, se oferece sempre em uma fase de segregação, em uma forma de ruptura com a vida coletiva, por vezes simplesmente com o domínio dos ritos privados (o banho), porém, mais particularmente, sob a forma de uma fase articuladora para os homens tornados selvagens e que rejeitam o vestuário.
Revelar o corpo nu, reservado à clausura, à solidão, ao olhar de um círculo restrito, é fonte de embaraço, de vergonha e de fragilidade. Não nos surpreendemos, portanto, de ver aqueles que encontram o homem nu em seu caminho como curadores que favorecem a caminhada na direção do vestuário.
O nu masculino significa destruição de uma ordem anterior, oposição mesmo a um estado anterior feito de ordem, uma anarquia cujas marcas são o abandono do vestuário, a destruição da aparência, a abolição das leis do comportamento, desordem gestual e incoerência do psiquismo: o nu masculino é o significante revolucionário, a representação de uma ruptura. Em compensação, o nu feminino se situa quase sempre na lógica direta de uma lei criada em absoluto, costume de rei ou vontade de imperador: "cumpriremos vossa vontade legítima", admitem as jovens no Roman du comte de Poisiliers, obra literária em que o imperador exige que sejam exibidas aquelas dentre as quais escolherá sua esposa.
Além disso, nas narrativas do Cyele de la Gagevre, o nu feminino - cuja privacidade sofre uma invasão ilegítima - está freqüentemente associado a um ganho material (terras, por exemplo). O único caso de um funcionamento auto-suficiente e feliz da nudez feminina encontra-se em narrativas com aspecto matriarcal, em que a mulher serve de sua nudez como de um chamariz.
Se as crianças se apresentam enquanto selvagens que emergem do reino animal progredindo para o mundo da Cultura, os outros nus masculinos são todos oriundos de uma verdadeira regressão em relação aos signos culturais do grupo, um retrocesso que animaliza o homem. Personagens como Bisdravet e Méilon retornam à forma humana depois de um tempo de exclusão, em que conservam sabedoria e memória de homem, e dos traumatizados do amor, dir-se-á por vezes que são muito semelhantes a um lobisomem.
Retornar-se o vestuário é o primeiro gesto de uma gloriosa reintegração no grupo, a fase de transição é uma verdadeira amnésia: perda das marcas sociais da identidade e perda das leis de um comportamento codificado. Assim repelido, por uma desdenhosa donzela que lhe impôs vãs provas, o herói Yvain Joge, do Dit du Lévrier, parte sua espada, rasga suas roupas e se vai, inteiramente desorientado pela floresta. Yvain espreita a caça, come carne crua, deita diretamente na pedra.
Durante a anamnésia (isto é, o retorno à memória) aparece então como doma e domesticação. No estado traumatizado, animal, são particularmente acentuadas a agressividade e a ruptura de toda a comunicação. Ao mesmo tempo desaparecem os valores da ética cavalheiresca, proeza, franqueza e vassalagem. Signo de um verdadeiro movimento de oscilação para o reino animal, é feito um amplo uso do paradigma desgrenhado / peludo: o homem selvagem aparece, assim, a uma só vez, nu e revestido, como se textos narrativos mal deixassem proferir "o homem nu".
A pele nova reproduz a função do espaço habitável e da estrutura da sociedade. A aparência civilizada aparece mais tarde como aquilo que, dessa natureza tornada exuberante e mal controlada, será domesticado, aparado e polido. Os ritos de reintegração comportam, com efeito, atos precisos de redução da selvageria, deve necessariamente passar pela expulsão dos elementos nefastos, anulação da loucura.
O sentimento de vergonha que atormenta o herói restituído à consciência vem do fato de que percebe, adivinhando o louco gestual de seu tempo de amnésia, a deturpação grave de um código: devolvido a si mesmo, ele se vê brutamente confrontado com o olhar de outros, cristalizados nos valores coletivos. Quando toma consciência da vida "repulsa e vil" que levou na cidade, a designação do espaço coletivo não ocorre de maneira casual: a incongruência de sua aparência leva o herói a reconstituir um pesadelo, o comportamento caótico sob os olhares da sociedade.
Aliás, para avaliar o alcance dessas narrativas na relação com o coletivo, é preciso sublinhar, na reintegração do exilado, a parte ativa do grupo que deve ressaltar, por sua descrição, por seu senso íntimista e secreto, que sabe reestabelecer o ausente e merecer seu retorno: deve apresentar-se como um envoltório tranquilizador e protetor. Nas narrativas de lobisomens, insiste-se, particularmente, no quarto que permite ao monstro, no momento do retorno à aparência humana, não se expor nu ao olhar: o homem cortês aconselha: "levai-o a um quarto a sós, secretamente, a fim de que não sinta vergonha diante da assistência".
"Vergonha é ver mulher nua", clama uma das jovens condenadas a se desnudar sob o olhar perscrutador de um imperador com falta de esposa. Como o privado frágil, é sempre suscetível de ser entregue ao olhar do grupo. É no próprio seio do quadro social que a mulher estará nua, o despojamento do vestuário faz dela uma presa que um olhar de homem pode ilegalmente capturar. Contrariamente ao homem nu, ela está sempre ligada à tragetória de um desejo nascente ou confirmado. O processo de desnudamento pode ser sugerido em termos violentos, como o imperador que ordena diante das trinta jovens: "cada uma ficará nua, tão nua, como quando saiu do ventre de sua mãe", e acrescenta: "é uma ordem, não um pedido."
Mas se a mulher entra voluntariamente no jogo do exibicionismo exigido pelo esposo, aceita tornar-se uma das marcas que fundam o poder masculino, como os vassalos que são anualmente obrigados a reconhecer a beleza da rainha. Como o vestuário - enquanto modo de representação do Eu - parecia para o homem a única forma lícita de exibição, a mulher nua aparece aqui em situação substituta.
Em compensação, a função do nu masculino parece estreitamente ligada aos ritos da sociabilidade e às marcas de coesão do grupo, submetidas a provas repetitivas: a tendência exibicionista do homem passa por uma total declaração pelo vestuário. À mulher, ao contrário, é atribuída uma situação de vergonha ("ser vista") e lhe está reservado um modo infeliz de exibicionismo, pois a mulher nua parece viver uma socialização mediatizada do corpo na medida em que - ao lado do vestuário que é para o homem o signo da integração do Eu, recuperado pela coletividade - ela não parece senão um signo entre outros.
O processo do nu ao vestido, aparece todo carregado de simbólica coletiva: expulsão e reintegração rituais, são etapas significativas do homem medieval com seu corpo. Em modo menor, a mulher é excluída dessa problemática: posta a nu, admirada, punida, ela serve para fazer nascer o desejo e permanece para o homem um dos trunfos da imensa alegria em si.
Em uma era, a partir de então, destinada ao sentimento de vergonha, o pudor, que se exprime claramente por ocasião dos retornos à aparência humana, e é mais explícito ainda entre as mulheres obrigadas a ficar nuas (com excessão da rainha ativa que só procura reunir confirmações de sua beleza). Mas aquelas, que na torre do imperador devem desnudar-se (submetidas de fato a um teste de virgindade), opõe a ordem cruel, malévola, um processo de despojamento do corpo muito lento e constrangido: tiram seus cintos, rasgam seus laços de seda, abrem o fecho do pescoço - tremem por medo e incômodo.
Reflexo do corpo de Adão, mas invertido como que por um espelho, o corpo feminino (mais permeável à corrupção por ser menos fechado) requer uma guarda mais atenta e é ao homem que cabe a sua vigilância. A mulher não pode viver sem o homem, deve estar sob seu poder. Anatomicamente, ela está destinada a ficar encerrada, submetida em uma cerca suplementar, a permanecer no seio da casa, e só sair dali escoltada, enterrada em um envólucro de vestiário mais opaco. É preciso erguer diante do corpo um muro, o muro "vida privada".
Por natureza, ela é obrigada ao retiro, ao pudor, deve preservar-se. Deve sobretudo, ser colocada sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo é perigoso, em perigo e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa quanto está mais preparada para seduzir.
O corpo era objeto de uma moral e de uma prática que o historiador tinha dificuldade em descobrir antes do final do século XIII, porque a arte, decididamente realista, e os escritos sobre esse assunto mascaram quase tudo. O princípio era de que é preciso respeitar seu corpo, pois que ele é o templo do espírito e ressuscitará, cuidar dele, mas com prudência, amá-lo ternamente como, segundo São Paulo, os maridos devem ter afeição por sua mulher: guardando a distância, desconfiando, pois o corpo é tentador como o é a mulher, ele leva os outros aos desejos, leva a desejar os outros. O mais aparente nos textos que nos informam é uma forte tendência a temer seu corpo, e dele libertar-se, levando aos extremos do ascetismo até a abandoná-los aos insetos.
A identidade se perde com o aparecimento do traje, o homem social passa a ser um homem vestido. Há malícia em evocar o nu, em primeiro lugar porque o uso da pele é um dos elementos discriminadores de representação social, em seguida, porque o corpo nu, em uma sociedade de ordem, define o extraviado ou o excluído sob o olhar das pessoas vestidas; enfim, porque a nudez confina o natural do homem. A sociedade passou a se manter de pé, pelo concenso expresso, pela aparência dos indivíduos.
A sociedade no fim da Idade Média se desenvolveu economicamente e multiplicou os estatutos. O vestuário se tornou assim uma das marcas essenciais de conviência social, destinando a cada parte do povo, seu papel e seu lugar. A nudez é o sinal de uma regressão em relação à ordem coletiva, de uma ruptura com os círculos da sociabilidade medieval. Na literatura, a nudez feminina significa luxúria e exibição forçada das prisioneiras cativas entre as quais um imperador de romance escolhe uma mulher. Quanto à nudez masculina, estava associada, nas representações literárias, aos fantasmas da loucura ou da vida selvagem, assim como o menino-lobo.
Outras origens se erguem e fazem da nudez uma invenção da cultura cristã: Adão, o glorioso, e Jesus, o suplicado, impõem ao povo fiel o esplendor do corpo virgem e dor do corpo martirizado. No final da Idade Média, na pintura do norte da Europa, a partir do séculoXV, traz a nudez triunfante de Adão e de Eva e a nudez de Cristo torturado até a morte.
O diálogo entre o homem e sua imagem, tal como refletem os artistas, participa da consciência nova que os homens e as mulheres do fim da Idade Média tiveram seu corpo revelado, sem se iludir sobre o corpo delicioso e pecador, do qual a alma escapará no último suspiro para ir habitar na monotonia do corpo sofredor no purgatório, diante do nu reconciliado no fim da Idade Média, que não se espere conhecer o íntimo. A intimidade é bem o último círculo do privado, mas passa necessariamente pelo corpo oferecido e despojado. A nudez supõem um olhar, um olhar percebido, desde o apelo que ressoou no paraíso nesta etapa, o olhar que os homens e mulheres do final da Idade Média lançaram sobre seu próprio corpo.
Autor: Philippe Ariès e Georges Duby
Origem: Nacional
Ano: 2009
Edição: 1
Número de páginas: 3212
Acabamento: Brochura
Volumes: 5
Editora: Companhia das Letras
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