Por Edson Moura
Seis horas da manhã, é hora de
levantar, mas pense num trabalho Hercúleo. Seria tudo mais fácil se naquele
tempo houvesse água jorrando por um chuveiro, coisa que só conheci pessoalmente
depois dos 15 anos. Vamos menino! Deixa de moleza! Era o que dizia minha mãe.
Ela não queria saber se eu passara a madrugada toda recolhendo água à conta
gotas no chão de barro do quintal. Muitos não acreditam, mas eu e meu pai tivemos que cavar um buraco de
aproximadamente 1 metro de profundidade para que a água conseguisse subir até a
torneira, era uma luta conseguir encher um tambr com 30 litros d'agua.
Nos dias de quinta feira, nós,
meu irmão mais velho e eu, íamos às 5 da manhã até uma padaria que vez ou outra
nos dava alguns pães de queijo velhos. No caminho de volta imaginava se teria
sido com um daqueles pães que Davi matou Golias. Provavelmente sim. Bom, mas
vamos falar da escola: A escola era minha alegria, adorava estudar, ficava um
pouco deslocado é claro, pois o colégio ficava num bairro nobre de São Paulo,
no Brooklin, e boa partes dos alunos eram de classe média. (não sei se naquela
época existia essa divisão de classes,para mim era só o rico ou só o favelado)
Mas, deslocado por quê? Ora,
minhas havaianas (hoje é chique usar, mas na minha época de escola era coisa de pobre mesmo), muitas vezes com um prego atravessado numa das tiras que
havia arrebentado, não combinavam com os tênis de marca que os “boyzinhos” usavam, por isso,
sentia vergonha. Mas que se dane, eu vim aqui foi pra estudar (pensava), e se
não passasse de ano com notas boas, minha mãe certamente me submeteria a desagradábilíssima experiência
de apanhar com um fio de ferro. Estudei até onde pude. Repeti a quinta série,
por pura vagabundagem, mas no ano seguinte, mesmo vitimado por um incêndio que
lambeu nosso barraco na favela do Jardim Edith, consegui me superar e ganhei o
prêmio de melhor aluno de todas as quintas séries. Foi motivo de orgulho para
mim, não para minha mãe, que provavelmente só se alegrou pelo fato de eu ter
ganhado todo material escolar da sexta série, com mochila, canetinha, apontador,
e tudo mais. Ah! Talvez meu irmão Vitor tenha se orgulhado.
Certa feita, nesse ano que virei
o “diabo” e comecei cabular aula para ir roubar bonequinhos dos “comandos em
ação” no extinto supermercado “Paes Mendonça” (peço a Deus que não tenha falido por causa dos meus roubos), fui pego com a "mão na massa".
Rapaz, que sufoco que eu passei. Tive que lavar todos os banheiros dos
funcionários (mais ou menos uns cinquenta), e ainda por cima sem meus óculos,
ou seja, praticamente cego, tendo que ouvir piadinhas dos seguranças. Foi nesse
dia que joguei um balde cheio de cloro num dos guardas, sério, se não fosse o
gerente (Belina era o nome dele) provavelmente eu seria afogado numa daquelas
privadas sujas, se bem que perto da surra que levei ao chegar em casa, morrer afogado numa privada teria sido menos doloroso. Eu era miudinho, mas era folgado que só!
A rotina era a seguinte: Como
disse lá no começo, levantava às seis da manhã, ia pra escola, e saia por volta
de onze e meia. Passava na barraquinha de doces do “Seu Siciliano”, roubava
algumas balinhas, ou, quando dava sorte, um pacote de salgadinhos de cebola (que
até hoje adoro), chegava em casa, dava uma geral. Varria o chão, lavava a
louça, passava pano, dobrava as cobertas, tudo isso não sem antes me
engalfinhar com eu irmão mais velho, pois sempre me senti lesado na divisão das
tarefas. Pôxa! Lavar a louça e varrer a casa é mais difícil que passar pano e tirar pó, e não queiram nem saber como é que se lavava louça sem agua encanada, usando um potinho de "Doriana" para pegar agua dentro de um tambor que, hoje sei, estavam cheios de larvas de mosquitos.
Por volta de duas horas da tarde
saímos para “catar ferro velho”. Para quem não conhece, é mais ou menos assim:
Chegávamos no “Ferro velho do Marcelo", na rua James Watt, pegávamos um carrinho
pequeno, desses feitos com geladeiras velhas, e saíamos para pedir jornal velho,
papelão, latas usadas, íamos na “Retel” para pegar chumbo derretido, etc. Quase sempre
ganhávamos roupas seminovas, que alguma alma benevolente separava para doação,
ou alguma comida. Lembro que uma vez ganhei uma bicicleta novinha em folha.
Acho que o filho da madame não gostou da cor, sei lá, então ela me deu. Mas
nunca tive o prazer de dar umas boas pedaladas nela, pois meu pai a deixava
trancada com o cadeado, certamente porque sabia que se saíssemos na favela com
ela, alguém iria tomar da gente. Senti uma pontinha de satisfação quando nosso
barraco incendiou e eu vi a pobre bicicleta ali, toda retorcida e com os cadeados
ainda a prendendo. Pensei: Toma besta! " Quem guarda com fome o rato come"
A coisa ruim de se catar ferro
velho por perto de onde se mora é que consequentemente você irá bater na porta
de algum amigo de colégio, e eu, como sou azarado ao quadrado, quase todo dia
encontrava um dos meus colegas. Abaixava a cabeça para não ser reconhecido mas
era em vão, impossível não me identificar pelos óculos (desses que hoje o Jô
Soares usa e é moda, mas na minha época era feio pra caralho). No outro dia, eu
já entrava na sala de aula desconfiado, cabrero, rezando para o filho da mãe que me viu
catando papelão não me denunciar aos demais alunos. Errado de novo. A zuação
era total e só parava quando eu, num misto de ódio, e vergonha, começava a chorar
calado. Muitas vezes chorei de soluçar, e só parava quando um dos professores vinham
em meu socorro. Nem sempre vinham.
Uma vez, durante a aula de
português com a Dona Cleunice (professora que até hoje acredito que me odiava),
lemos um texto que se chamava “Burro sem rabo”, de Heloísa Seixas eu acho. Mas
ninguém sabia o que significava a expressão. Eu sabia. Mas o Fúvio, o mais
inteligente, e o mais rico de nós, filho de médicos, tratou logo de bradar. Ah
professora! Burro sem rabo é o Edson. Meu coração podia ser ouvido a
quilômetros de distância, senti o rosto corar e o suor começar a brotar em cima do nariz, comecei a me encolher na cadeira, querendo desaparecer dali, mas já era, estava feito, quem
até aquele momento não sabia que eu era catador de papel, agora já sabia e não
tardaria para o apelido “burro sem rabo” pegar. E Pegou mesmo. Senti vergonha mais uma vez.
Sobrevivi até a sétima série, foi
quando por extrema necessidade financeira, precisei abandonar os estudos para
trabalhar em dois empregos. Lembro que chorei no primeiro dia de"não ir à
escola”, mas o tempo é um pai longânime e tratou de me curar. Superei os
traumas, cresci, casei, tive quatro filhos, e hoje, vinte e dois anos depois, sentado
na adega de um restaurante Francês em
que trabalho como Sommelier, escrevo a crônica da minha vida. Fico assustado com
a clareza das lembranças, e com a dor que ainda sinto. Vocês podem se perguntar: E o que me levou a
escrever isso? Ora, foi uma propaganda na televisão onde algumas celebridades se
intitulam “sou catador” ou “sou catadora”. Mentira, eles nunca poderão sentir a
dor que sente um catador, a alegria por ganhar um par de sapatos velhos que
ainda podem ser usados. Jamais saberão o valor que dez quilos de jornal vendido
pode ter. Eu sei! Dez quilos de jornal têm o valor de dois pãezinhos que alimentarão seus filhos por mais uma manhã.
Hoje não sinto mais vergonha.
Confrade, que bela história. Bem, bela olhando pelo retrovisor, pois ao vivê-la, você não poderia nunca chamá-la de bela. Mas é bela pois é a história de uma parte da sua vida e todas as histórias de vida eu considero belas, por mais trágicas que sejam. As tragédias podem nos matar mas também podem nos fortalecer.
ResponderExcluirNo seu caso, fizeram de você um gigante.