quarta-feira, 2 de novembro de 2016

"40 dias no Vale da Sombra da Morte"


Título original: Carta a um Confrade
  
Caro confrade Márcio

Dias atrás me pediste para fazer uma resenha crítica de teu livro recém lançado ― “45 Dias de Pânico”. Confesso que me senti incapaz de realizar tal façanha, ante a impossibilidade de tratar de um assunto tão intrínseco subjetivo e altamente individual. Preferi, te escrever uma carta, ao estilo dos velhos tempos em que nem de longe imaginávamos o advento de um progresso tecnológico tão atraente como o da internet.

Recebi teu livro por e-mail, e comecei a lê-lo aos poucos, para degustar melhor. Na ocasião, em uma mensagem postada no teu Face, falei que estava iniciando a leitura de tua passagem pelo “Vale da Sombra da Morte” ― expressão de grande valor metafórico e muito conhecida entre nós, que tivemos um passado não mui agradável pelos meandros da religião. Ressalte-se aqui, que os arquétipos religiosos plantados nos arquivos mais profundos de nossa psique são indeletáveis, e a todo momento, sem que percebamos, estão eles a enviar ressonâncias para o tempo presente.

Como você bem sabe, a psicanálise jamais teria existido sem o pano de fundo dos símbolos e dogmas religiosos da tradição judaico-cristã, a qual, por sinal, é a base de toda a cultura do mundo ocidental. Os grandes expoentes da Psicanálise beberam dessa fonte inesgotável: Freud (seu herói era o Moisés retratado por Michelangelo) fez uma leitura partindo dos mitos judaicos, considerando a religião uma “ilusão infantil” ou neurose obsessiva(mas quem não tem um pouco dessa “loucura”? Se não fosse a tal da neurose nesse nosso mundo esquizóide, não existiria o artista, que é justamente aquele que consegue dar as suas experiências dolorosas um significado elevado para si e para os demais). Jung, brilhantemente aproximou sua nascente ciência da rica simbologia do Protestantismo (seu pai era um pastor protestante). Lacan, católico, por sua vez, conciliou Freud com a simbologia dos termos aparentemente ambíguos presentes nas histórias bíblicas, substituindo a palavra “Deus!” ou imago-deus de Jung, por “Grande Outro”.

Logo na página 25 do teu livro, um insight, ou mesmo o sentimento “religa-re”(de natureza religiosa) creio eu, vindo dos obscuros porões do teu inconsciente, me prendeu a atenção, quando repetiste uma das frases mais contundentes do messias que os evangelhos relatam: “A Minha Alma está Angustiada até a Morte.

Na página 75, para expressar a forte dimensão analógica de tua angústia como companheira inseparável (e não poderia ser diferente), recorreste as regiões abissais dos arquivos arquetípicos religiosos escondidos em tua psique: “...igual a Jesus disse do seu Pai nos evangelhos. Que Ele e o Pai (Deus) eram um.”

Ainda sobre a desditosa e inseparável angústia, na página 89, eis que me deparo com uma ressonância poderosa do tempo em que eras pregador das Boas Novas: Por que Afinal Tenho Que Recorrer à Bíblia? Tu mesmo respondes de forma profunda, tanto do ponto de vista psicanalítico, quanto do ponto de vista teológico: ...porque ninguém em sã consciência deseja e vai ao encontro dela…, nem precisa mesmo…, ele é quem vem sempre ao nosso encontro.” O conteúdo do inconsciente é assim: nós não o escolhemos; ele vem a nós quando nos desarmamos.

Perdão peço, porque em meio a descrição de tua enorme agonia, não pude evitar que a figura de Edir Macedo viesse a minha mente, quando li a expressão largamente usada e abusada no meio fundamentalista ― “Demônios da Insônia”, na página 95. Na ocasião lembrei-me de um texto por mim postado em junho de 2010 na C.P.F.G.: “Sobre Nossos Demônios Interiores”, de onde, para avivar a memória, retiro esse pequeno trecho:

É nesse grande palco mental que o apóstolo Paulo denominou de “lugares celestiais”, que se trava a imaginária luta entre as forças divinas e diabólicas”  que rendeu 120 comentários. Dentre eles, ressalto a tua irretocável réplica: “Sendo assim, conhecemos um pouco do caráter do sujeito através da imagem que ele nutre de seu deus”.(Marcio)

Na página 123, com o sub-título “Afinal o que Deus tem a Ver com Isso?” esboças uma reação (afinal, somos todos reativos). Continuando, fazes a seguinte afirmação (ou reação defensiva – Freud explica – rsrs): “Não acredito na existência de Deus! Acabou a minha fé em um Deus celeste.”

Considero que quando afirmamos “sou ateu” estamos defensivamente a nos referir àquela parte obscura e recalcada de nós que nos incita a anular uma provocação, talvez vinda do inconsciente. Quando a provocação vem, seja de fora (de outro) ou interna, o sujeito ativa o mecanismo de negação. Quando a cobrança ou ameaça vem da esfera do inconsciente, o indivíduo passa a guerrear contra si mesmo. Freud, certa vez, disse que estamos fadados a perder no conflito com o Superego. O equilíbrio reside em fazer as pazes com essa imago-paterna-ameaçadora, tornando-a menos importunadora, nunca tentando desafiá-la ou destruí-la

Sabemos que o que mais caracteriza o homem é a sua contradição ou ambivalência, como tentei passar no último ensaio do meu blog “Ensaios&Prosas”, que tem por título: “Homem, Teu Nome é Paradoxo!”. Do qual replico seu epílogo:

"Quem livrará o nosso EU, do peso da Contradição?” Quem atentar para essa brilhante enunciação da dúbia alma humana realizada pelo apóstolo fundador do cristianismo, verá que ela está em perfeita consonância com o sujeito da psicanálise, que às avessas do jargão cartesiano 'penso, logo existo', abarca o Homem Paradoxal com esta emblemática frase:'Penso onde não sou; sou onde não penso'.”
 
Olha lá o que colhi da paradoxalidade dos nossos afetos (advinda do polo que, devido certas circunstâncias, consideramos negativo) que a tua veia poética traduziu em forma de uma extraordinária prece:
Meus Deus, como faz bem para minha alma tão sofrida e angustiada, ficar neste momento… ...olhando a tranquilidade, serenidade e paz do meu filho dormindo.” (Márcio  45 dias de Pânico  página 130)

Jung, já bem avançado de idade, fez uma declaração autobiográfica que considero emblemática para o nosso tempo tão des-humano: “Não posso me referir aos meus relacionamentos mais íntimos que me voltam à mente como lembranças longínquas, pois constituem não somente minha vida mais profunda como também a dos meus amigos.” (“Memórias, Sonhos, Reflexões”  Carl G. Jung — página 21)

No capítulo “Antes de Tudo Religião” (página 183), Márcio, meu caro confrade, fazes aflorar uma profusão de lembranças que,creio eu, tem ainda hoje o condão de te impulsionar a escrever, escrever e escrever sempre… sobre teu ser em si, como mostra tão bem o parágrafo abaixo:

A religião foi durante grande parte de minha vida, meu chão, meu norte, minha bússola… A pior coisa que me aconteceu na vida foi ter-me tornado 'ateu'. […] Eu queria transformar o outro (crente) em ateu, justamente porque o 'outro' era meu espelho que refletia o que já fui e ainda o que está bem vivo dentro de mim.”

Lendo o teu instigante livro, de modo reflexivo, não consegui nas entrelinhas, identificar em ti a ausência desse tal ‘sentimento sublime!” que grupos religiosos banalizaram para interesses mercadológicos. Como escrevi em um artigo nos idos de 2011 a um amigo da blogosfera:

"embora uma pessoa rejeite toda a crença, dogma e ilusão religiosa, não significa que ela tenha anulado o sentimento nobre de re-ligar-se a um éden utópico”.

P.S.:

Mas voltando ao título do teu livro. Usando o simbolismo judaico-cristão do número 40, e à guisa de encaixá-lo dentro de uma metáfora bíblica, penso que não seria tão danoso subtrair cinco dias de tua agonia para denominá-lo de: “40 dias no Vale da Sombra da Morte” ― tema que faria o Eduardo, o Esdras e o J. Lima se esbaldarem em comentários psico-teológicos, como fazíamos naquele saudoso e idílico tempo da C.P.F.G. (rsrs)

Abçs,

Levi B. Santos

Guarabira, 02 de novembro de 2016

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