sexta-feira, 5 de agosto de 2016

"Questões acerca da morte" (1ª Parte, por um viés religioso)

A filosofia, ao contrário do que muitos imaginam, não deve ser complicada, ao invés disso, ela deve ser o mais objetiva possível, sem palavras difíceis que muita das vezes estão ali, presentes nos artigos filosóficos apenas para dar um ar de intelectualidade ao autor. Costumo escrever muito sobre morte, o que me rendeu um rótulo de pessimista, mórbido, desiludido ou decepcionado com a vida, ou seja, uma pessoa propensa ao suicídio. Pois bem, que pensem o que quiserem. Não me importo (muito) com esses detalhes. Enquanto vão me tachando de frustrado eu vou vivendo e sorvendo cada minuto da minha existência como se não fosse haver outros mais. 

Muitos dizem (eu inclusive) que a morte faz parte da vida, o que não soa muito correto se formos ser rigorosos com os termos. Ninguém que ainda esteja vivo, (eu, você que está lendo, todos nós) experimentou de fato o que é morrer. A morte é o fim de um processo orgânico, que ao cessar de pulsar como vida, se acaba, se extingue. Portanto, a morte faz parte do “além-vida”, a morte pertence apenas ao mundo dos mortos. O problema é que o mundo dos mortos faz parte do mundo dos vivos, seja no culto aos mortos, nos cemitérios, nos rituais fúnebres das tantas religiões, na poesia, na literatura, na saudade que fica ao perdermos um ente querido e na “esperança de um dia o encontrarmos novamente na eternidade”. É aqui que entra a Filosofia.

Se a morte não faz parte da vida, pelo menos ela deve fazer parte do pensamento dos que estão vivos. A consciência que nós “sapiens” temos da morte nos persegue e nos obriga a tomarmos uma posição, mesmo que esta seja fugir de sua lembrança inventando mil desculpas e sublimações. Mas já os que possuem fé, ou acreditam na continuação desta vida, concebem em suas cabeças, um paraíso ou um inferno, um nirvana, um renascer, ou seja, morrer de forma alguma é o fim para essas pessoas. Platão e Sócrates acreditavam nisso, portanto, filosofaram sobre a Vida e a Morte. Já Nietzsche e Sartre não acreditavam, mas também filosofaram. E se para Cícero, “Filosofar é aprender a morrer”, poderíamos reescrever esta frase e dizer: “Filosofar é aprender a viver”.

Todos os seres vivos morrem. Eu disse Todos! Esta é uma lei natural e universal a que ninguém escapa, logo, o ser humano, como animal, também morre. É certo que os avanços na medicina ou na engenharia genética andam prometendo certa “imortalidade” para em breve. Mas não sabemos quando, nem como e sequer, se atingiremos este sonho. Mas só o homem tem consciência de que vai morrer. E por este motivo, já antes de nossa morte, podemos senti-la, pensá-la, vivê-la, o que não deixa de ser um paradoxo. O fato é que, dessa consciência que temos de que vamos morrer, surge uma gama de possibilidades e consequências históricas, culturais, sociais e filosóficas sobre a significação humana da morte. Daí surgiu as grandes religiões, com a promessa de que o homem não morre para sempre, de que ele sobreviverá à morte física. Sejam eles os Cristãos, os Muçulmanos, os Judeus ou os Budistas.

Mas embora tantos prometam uma vida após a morte, a ressurreição, o renascer, o reencarnar-se, o nirvana, ainda persiste o problema de que cada ser humano terá que enfrentar sozinhos a “travessia com o barqueiro para o outro lado”. Mesmo com o consolo das crenças e das religiões, o medo de deixar a vida continua assombrando a humanidade, provocando calafrios, fugas, alienações, neuroses e orações. E ainda que as religiões prometam a salvação eterna, muitos de seus fiéis abarrotam as igrejas com seus corpos mortais adoecidos em busca de um milagre, curas físicas ou espirituais, prosperidade financeira, o retorno de um amor perdido, ou seja, a felicidade aqui e agora, o mais longe possível da famigerada morte. Ninguém que morrer, nem tampouco falar da morte... da sua morte. O medo da morte é um dos maiores incentivos para a atividade humana, atividade esta, em boa parte destinada a evitar a chegada da inevitável morte, buscando inutilmente vencê-la, enganando-se com a negação de que ela seja o destino final do homem.

Se olharmos com atenção para as diversas civilizações e povos da história da humanidade veremos que todos tiveram e têm uma relação ritual e simbólica com a presença da morte, embora, possamos encontrar sociedades que lidem de diferentes formas com a mesma. Desde que se criaram as religiões e os deuses, os rituais criados pelo homem nada mais são do que formas de se relacionarem, de “negociarem” com o sagrado, com o sobrenatural, o mistério divino, tendo como anseio galgarem uma vida que supostamente se estenderia para além desta. Assim o homem buscou, busca e continuará buscando por muito tempo ainda a imortalidade e o eterno. Foi assim que as civilizações antigas inventaram suas crenças absurdas, seus rituais grotescos (a começar pela feitiçaria).

Certamente os feiticeiros foram os primeiros a tentar controlar, pela magia, as forças, sejam elas do bem ou do mal, em benefício do próprio homem e suas necessidades de sobrevivência histórica ou para além dela. Depois deles vieram os sacerdotes, os profetas, os enviados por  Deus ou pelos deuses, tentando mostrar assim que, mesmo sem experimentar literalmente a morte era possível um prelúdio de como seria o mundo dos espíritos, de como os heróis mitológicos iam e vinham do reino dos mortos, vitoriosos, carregando a cabeça de seus inimigos, ou amarrando as serpentes infernais em cativeiros no submundo. Assim foram os deuses do Egito Antigo, Ísis, Osíris, Néftis, entre tantos outros. A crença da imortalidade da alma, que certamente inspirou a fé judaica, marcou toda a milenar cultura egípcia, cujas pirâmides que até hoje erguem-se imponentes nas areias do deserto do Saara, nada mais são do que túmulos de seus reis, guardando sarcófagos com suas múmias embalsamadas e cheias de tesouros, esperando a volta de suas almas do mundo dos mortos.

Na Grécia, os cultos a Orfeu e a Dionísio e os mistérios de Átis e de Adônis possuem a mesma essência, a saber, a morte e o renascimento. Por aí podemos avaliar que, enterrando ou cremando seus mortos, a humanidade sempre revelou e continua a revelar essa crença ou, como alguns gostam de chamar, fé, na eternidade da vida para além da morte.
 
Continua...

Edson Moura

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